“Senhor, ensina-nos a orar”,
evocava humilde e esperançoso um dos discípulos (Lc 11.1). O incógnito
suplicante fizera uma das orações mais
breves de toda Escritura. No desejo de
aprender a orar, suplicou, e prontamente foi atendido. Jesus ensinou-lhe a
essência e o paradigma da oração cristã eficaz.
A oração estava presente e
arraigada na religião e cultura judaicas de tal modo que não temos qualquer
perícope nas Escrituras que interrogue a respeito de sua definição. Ensinar a
orar não é a mesma coisa que definir o que é orar. Os
discípulos de Cristo, assim como os de João ou dos fariseus, não questionavam
seus mestres a respeito do significado da oração. Ensinar a orar diz respeito à
liturgia, à forma; definir a oração tem a ver com a teologia.
O súplice sabia mais
da teologia da oração do que de sua forma. Ele não precisava que Jesus a
definisse, pois o povo israelita possuía uma longa tradição teologal e
litúrgica nas quais a oração era componente essencial do culto a Javé. O
conceito de oração era de pleno conhecimento do israelita adulto, razão pela
qual não havia necessidade de o discípulo incógnito perguntar por sua plena
significação. Entrementes, sentira a urgência de apreender a sua essência e
forma.
Apesar de inserido em
uma sociedade cúltica e orante, vira que seu Mestre invocava a Deus com a mais
íntima comunhão. O particípio presente do verboproseuchomai, “orando”,
possibilita a interpretação de que os discípulos estavam presentes nesse “certo
lugar” (Lc 11.1); caso não estivessem presentes, o que parece não ser o caso,
chegaram enquanto Jesus ainda orava.
Se fazia parte da tradição o
rabino ensinar aos seus discípulos como se deve orar, como atesta o complemento
“como também João ensinou aos seus discípulos”, então, era oportuno que o
aprendente interrogasse seu mestre a respeito do assunto. Assim, embora não
perguntasse ao ensinante o que é oração, indagara a respeito de como deveria
orar, uma vez que, de acordo com Joachim Jeremias, na época do Novo Testamento,
o judeu piedoso “rezava três vezes ao dia”,[1]indicando
assim, que não era preocupação do judeu orante a definição de oração, mas em
que a oração do Galileu diferia-se da tradição.
As
duas proposições,
como orar e o que é oração demonstram, entretanto, uma relação entre a
experiência cúltica da oração e a definição teórica que a orienta. A
experiência é a expressão prática, mas a definição, a expressão doutrinária. Se
o discípulo fizesse a segunda pergunta, seu interesse seria teológico e
dogmático, porém, como fez a primeira, demonstra maior preocupação com a forma
e prática da oração do que em sua episteme. A primeira indagação é litúrgica e
cultual; enquanto a segunda, doutrinária e teológica. Esta traduz a teoria, mas
aquela, a experiência religiosa. As duas não são antagônicas, mas
complementares.
De acordo com Joachim
Wach, a expressão teórica e a experiência religiosa estão entrelaçadas, de modo
que uma não se sobrepõe à outra. Segundo o autor
A
expressão cultual (prática) da experiência religiosa precede a expressão
teórica, ou os elementos doutrinais são os que determinam as formas nas quais o
culto será realizado? [...] A interpretação mais plausível parece ser a que
considera tanto a expressão teórica como a prática como estando
inextricavelmente entrelaçadas e a que desaprova qualquer esforço de atribuir
prioridade seja a uma, seja a outra.[2]
Correndo o risco de
perturbar a clareza de nossa assertiva, a experiência religiosa para Wach
refere-se à expressão prática no culto e nas formas de adoração. A manifestação
dessa experiência religiosa se realiza na doutrina (teoria), no culto (prática)
e na comunhão (sociologia),[3] isto
é, no conteúdo, forma e coletividade.
De acordo com o autor, o culto forma, integra, e desenvolve
o grupo religioso através de seus principais elementos (a oração, o
sacrifício e o ritual).[4] O
culto, na acepção sociológica, se compõe dos exercícios religiosos que
relacionam e integram o homem e o seu grupo religioso ao sagrado.
As
experiências religiosas advindas
principalmente da prática litúrgica e da comunhão do grupo, segundo Severino
Croatto, são influenciadas pela experiência humana que é sempre
relacional. [5] Assim,
a oração não é uma manifestação religiosa articulada fora da experiência humana
e do grupo religioso. Ela pertence ao jogo de linguagem, segundo Wittgenstein[6], e às representações religiosas
coletivas que exprimem, segundo Émile Durkhein, realidades coletivas[7] e, como elemento que integra o
rito, constitui-se um elemento de mediação hierofânica.Por conseguinte, a
oração não é uma manifestação religiosa articulada fora da experiência humana e
do grupo religioso.
Portanto,
o discípulo orante não
necessitava do conceito de oração, já que a prece fazia parte de sua
experiência religiosa, mas de sua realidade cúltica, transformacional e
mediadora, suplantada pelo tradicionalismo de então. As formas mecânicas da
oração hebreia contrastavam com a oração vivificante de Cristo, razão pela qual
o pedinte suplica por sua fórmula em vez de sua significação.
Ainda
preso aos tentáculos do tradicionalismo,
pensava ele que a essência da oração era sua forma, suas estruturas e ritos. O
discípulo conhecia a teoria, mas essa se opunha a prática vigente. Por
conseguinte, teoria e forma, doutrina e liturgia não se dicotomizam, muito
embora seja possível romper a forma da essência e a doutrina da liturgia. A
teoria e a experiência religiosa, por mais que se conflitem, estão entrelaçadas.
Wach
critica aqueles que separam a teoria (a fórmula
racional) da experiência religiosa (a manifestação prática). Considerou
equivocada a posição dos teóricos que atribuem à religião um caráter apenas
reflexivo e, principalmente, a de Schleiermacher, para o qual as ideias são
estranhas à religião e devem ser substituídas pela intuição.[8]
Para Schleiermacher, a religião não é conhecimento e muito
menos atividade que condiciona a vida moral (ação), mas tão somente sentimento,
uma experiência meditativa (andächtiges Erleben), ou como Mendonça
define a concepção schleiermacheana, “presença do infinito no finito”
Baseando-se na psicologia, Schleiermacher afirma
que o sentimento constitui a faculdade peculiar da vida religiosa. Religião não
é conhecimento, assim como não é a atividade que condiciona a vida moral, mas é
sentimento. Presença do infinito no finito.[9]
Ambas
as teorias, as que negam o conhecimento teórico e
as que atribuem apenas o caráter reflexivo da religião, são opiniões
unilaterais que reduzem e minimizam a religião e suas “diferentes formas de
expressão”, afirma Wach.[10]
Todavia, Wach concorda com Max Scheler, segundo
o qual o conhecimento religioso não existe antes de sua expressão cultual. O
ato religioso pode ser ato mental [geistiger] de natureza psicofísica.[11] A
adoração, por conseguinte, é um dos meios para o crescimento do saber religioso
e a linguagem o instrumento que expressa a experiência religiosa. A linguagem
religiosa, entretanto, não é neutra, mas traduz a experiência sagrada. É
desvelamento e mistério.
Félix-Alexandro Pastor,
nomeia a linguagem da experiência religiosa como: doxologia
cúltica – expressiva da própria fé, sem
excluir referências informativas e normativas –,analogia –
de tendências informativas –, e homologia –
de caráter normativo.[12] Por conseguinte, múltiplas são as
linguagens que traduzem a experiência cúltica e religiosa; elas não se anulam e
muito menos se excluem mutuamente, pelo contrário, complementam-se.
Portanto, não há qualquer contradição no fato de o discípulo
inquirir como orar em vez de o que é oração. As duas questões encontram-se no
epicentro do culto e sintetizam-se na experiência e na linguagem religiosa.
[1] JEREMIAS, J. Teologia do
Novo Testamento. 2.ed.rev.at. São Paulo: Teológica, 2004, p.115.
[2] WACH, Joachim. Sociologia
da religião. São Paulo: Paulinas, 1990, Coleção Sociologia e
Religião, p.31.
[3] Id.Ibid., p.12,30-49.
[4] Id.Ibid., p.56,57.
[5] CROATTO, J. S. As
Linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da
religião. 2.ed., São Paulo: Paulinas, 2004, p.41-46.
[6] WITTIGENSTEIN, L. Investigações
filosóficas. Rio de Janeiro: Vozes, Coleção Pensamento Humano,
p.27.
[7] DURKHEIM, Émile. As
formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.
212.Importante para a compreensão do caráter coletivo da oração é a definição
de Durkheim a respeito da religião e de sua manifestação social: “A religião é
uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações
coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que
nascem no seio dos grupos reunidos e que são destinados a suscitar, a manter ou
a refazer certos estados mentais desses grupos.”
[8] Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E.
Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo:
Novo Século, 2000, p.29-33.
[9] MENDONÇA, A. Gouvêa. Protestantismo
no Brasil: um caso de religião e cultura. REVISTA USP. São Paulo,
n.74, p. 162, junho/agosto 2007.
[10] Id.Ibid.,p.31.
[11] Apud
WACH, J. Id.Ibid.,p.32.
[12] PASTOR, F.A. A lógica do
inefável. São Paulo: Edições Loyola, 1989, Coleção Fé e Realidade –
27,p.85.
Crédito
da imagem de abertura:
http://juventudecatolica33.blogspot.com/2010/08/papel-de-parede-oracao.html
Extraído do blog: http://teologiaegraca.blogspot.com.br/2010/09/senhor-ensina-nos-orar.html
Extraído do blog: http://teologiaegraca.blogspot.com.br/2010/09/senhor-ensina-nos-orar.html